quinta-feira, 13 de outubro de 2011

O crime que apavorou São Paulo:Papai endemoninhado

A gripe espanhola, que devastou São Paulo no final de 1918, mudou radicalmente a vida da família alemã Schonhardt, que há cinco anos abandonara Wurtemberg, sua terra natal, para tentar a sorte no Brasil. Ernest Schonhardt, o da casa, era pedreiro. Construíra, com muito esforço, um pequeno chalé na alameda dos Potiguaras, no então quase deserto bairro de Indianópolis, Zona Sul da , para morar com a mulher e os dois filhos.

Nenhum deles falava português. A mulher, Elisa, de 43 anos, dois a menos do que o marido, auxiliava Ernest a cuidar das hortas e dos jardins da humilde chácara. O primogênito, Ernest Schonhardt Júnior, de 19 anos, havia algum tempo estava empregado em um hotel no Centro. Já a caçula, Rosa, de 16 anos, trabalhava na casa de outra família alemã, os Weill, que moravam na rua Vergueiro, 251. De lá, só saía nos finais de semana para visitar seus pais.
Os Schonhardt suavam muito para ganhar seu pão, mas eram felizes. Cânticos religiosos eram ouvidos com freqüência em sua casa e a devoção da família ao trabalho e ao credo protestante era admirada pelos poucos vizinhos. Essa rotina, entretanto, mudou radicalmente em 4 de novembro de 1918.
Naquele dia, Ernest tornou-se uma das vítimas da gripe espanhola, que atingiu 23% da população da , matando pelo menos 1 %. Em 6 de novembro, o alemão foi removido para um hospital e, em seguida, Elisa e os dois filhos também foram contaminados pela peste. Pai e filha ficaram internados por quase 15 dias, mas se salvaram, assim como a mulher e o filho.
Depois de recuperados, Elisa e os filhos começaram a notar que o comportamento de Ernest não era mais o mesmo. Ele passou a ter freqüentes delírios de febre e a fazer profecias. Dizia que a família deveria abandonar o protestantismo e se tomar católica. Passava o dia rezando e gritando, incessantemente, pela casa. Rasgava de santos e chegou até a tentar pôr fogo na Bíblia. Em um de seus ataques de loucura, contou à mulher e ao filho que Deus e o demônio haviam feito um acordo segundo o qual existia, em cada cidade, uma família incumbida de lutar contra Deus. Em São Paulo, eles eram os escolhidos. Logo em seguida, dizia que a missão, na verdade, era derrotar o diabo para, assim, serem admitidos por Deus no reino dos céus.
O estado de saúde de Ernest, que sempre fora um homem dedicado e carinhoso com a família, agravou-se chamando a atenção, inclusive, dos vizinhos. Mãe e filho começaram a ficar impressionados com a constância de suas pregações e do seu comportamento irracional. Passaram, então, a vigiar o pedreiro e a rezar pela sua alma. Ernest Júnior chegou a dizer à mãe que o pai estava com o diabo no corpo. Foi mais longe. Sugeriu ainda que o pai morrera dias antes, enquanto dormia, e que sua alma havia abandonado o corpo. “Satanás tomou conta do pobre”, teria dito o filho a Elisa.
Aconselhados pelo engenheiro Fernando Malchert, um amigo da família, Ernest Júnior e sua mãe resolveram internar Ernest num hospício. Chegaram a encaminhar uma ao delegado Cantinho Filho, da Polícia Central, pedindo a internação. Mas a lentidão da burocracia pôs tudo a perder.
Amedrontada com o comportamento violento do marido, que numa noite chegou a tentar colocar fogo nos cobertores do casal, Elisa passou a dormir com o filho. Ernest ficou enfurecido com a atitude da mulher e seus ataques tornaram-se ainda mais atemorizantes. Na noite de 30 de novembro, ele atacou Elisa tentando retirar à força um lampião que a mulher carregava. Ferida no antebraço, ela correu para junto do filho.
Furioso, o pedreiro desceu para o porão da casa, onde começou a gritar e a cantar hinos religiosos. Ernest Júnior foi atrás e, ao deparar com o pai no fundo do escuro porão, ficou chocado com a cena. Ernest estava completamente nu e com o rosto transtornado, deformado. Ao ver o filho, o alemão correu em disparada para o quarto da frente da casa.
Nesse momento, mãe e filho chegaram à conclusão de que, para não serem mortos pelo “demônio”, teriam de matá-lo. Ao encontrar o pai com a boca fechada e os dentes cerrados, e a fisionomia irreconhecível, Ernest Júnior, desesperado, gritou para a mãe: “Isto é mesmo o diabo! Vamos fazer o grande benefício de liquidá-lo. É um benefício que estamos prestando a ele”.
Ernest Júnior atirou o pai no chão e, com os joelhos sobre o peito do pedreiro, agarrou sua cabeça. Com o auxílio da mãe, tentou abrir a boca de Ernest usando colheres, conchas e garfos. Ao constatar que sua investida era inútil, pediu à mãe que fosse buscar uma pedra de amolar facas, que enterrou violentamente na boca do pai. O pedreiro já golfava sangue, mas coube a Elisa Schonhardt dar o desfecho à tragédia: apanhou um facão na cozinha, deu vários golpes e decepou a cabeça do marido, atirando-a a um canto.

Ao terminarem a trágica tarefa, mãe e filho tiraram as roupas ensangüentadas, lavaram-se numa tina de água e deitaram-se para dormir. Foram encontrados pelo engenheiro Fernando Malchert, por volta das 12 horas do dia seguinte, rezando debaixo de uma árvore da chácara. O engenheiro foi à casa dos Schonhardt para saber do estado de saúde de Ernest e comunicar a Elisa que o delegado havia aceito o pedido de internação de seu marido.
Abatidos e com as feições transtornadas, os dois contaram ao engenheiro o que tinha acontecido. Horrorizado com o estado em que encontrou o corpo do pedreiro, Fernando Malchert chamou a Polícia. Antes do engenheiro, Rosa Schonhardt – a filha mais nova do casal – havia passado na chácara para visitar o doente. Ao perguntar à mãe sobre o pai, Elisa, friamente, respondeu: “A alma do seu pai há dias que voou para Deus. Com ele estava a do diabo, que nós matamos ontem. O corpo está lá em cima”.
Sem compreender direito a atitude da mãe e do , Rosa saiu da chácara aos prantos – depois de deparar com o corpo degolado do pai no quarto. Não teve, sequer, forças para chamar a Polícia. Disse apenas a alguns vizinhos que o pai não era tão louco assim como afirmavam e que enlouquecidos mesmo estavam sua mãe e seu .
Depois de prenderem Elisa e Ernest Júnior, os policiais subiram ao quarto do pequeno chalé da alameda Potiguaras, onde se encontrava o corpo de Ernest Schonhardt. A cena era de dar arrepios. Em meio à desordem total, o cadáver nu do pedreiro repousava em meio a uma poça de sangue. Sua cabeça estava a um metro do corpo, com a pedra de amolar facas na boca. Havia roupas rasgadas, colheres, conchas e garfos por todos os lados. No chão ensanguentado, pegadas: sinais de que ali se travara uma atroz.
Em seu depoimento, Elisa Schonhardt mostrou-se bastante calma e lúcida. Com a ajuda de um intérprete, disse ao delegado que havia matado o marido em legítima , porque a alma dele já não se encontrava mais entre os vivos. Segundo ela, o diabo havia tomado conta do corpo de Ernest, com a finalidade de liquidar a família.
Já Emest Júnior mostravase bastante agitado. Perturbado, não teve condições nem de prestar depoimento no dia da prisão. Foi interrogado somente no final da tarde do dia seguinte ao crime. Reproduziu as cenas da tragédia com riqueza de detalhes. Para dar maior impressão à narrativa, gesticulava e atirava-se no chão, mostrando como havia derrubado e imobilizado o pai. No entanto, os policiais notaram que a cada passo de sua narrativa, parava para descansar, como se estivesse fatigado. Além disso, voltava sempre ao mesmo assunto, como uma fita de .
Elisa e Ernest Júnior ficaram presos durante semanas na delegacia de Santa Efigênia. Lá, começaram a dar visíveis sinais de loucura. Passavam o dia rezando e cantando, desesperadamente. Foram submetidos a uma batelada de exames. A conclusão dos psiquiatras foi unânime: mãe e filho foram responsabilizados pelo crime e, em seguida, internados no Recolhimento dos Alienados. Eram, na verdade, doentes mentais em avançado estado de loucura.
Rosa Schonhardt, a caçula dos Schonhardt, também foi convocada pela Polícia para prestar depoimento, mas foi liberada em seguida, pois ficou provado que ela não tivera relação alguma com o assassinato do pai. Voltou para casa de seus patrões e, ao que tudo indica, levou uma vida normal.
Fonte: Kelly Cristina – Revista Já ( O Diário Popular – Ano 1 – Nº37 – 20 de Julho de 1997 – págs. 28/31)
As de São Paulo no início do século XX, meramente ilustrativas, são de Aurélio Becherini

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