terça-feira, 7 de setembro de 2010

Blog Bêbado gonzo

A desgraça nossa de cada dia dos assaltos-com-refém

 Não é todo dia que se entra no Coliseu e se ouve a plateia enlouquecida torcendo pelos leões. Não que os candidatos a comida de felino pudessem ser comparados aos mártires cristãos da Roma antiga. Mas foi mais ou menos por aí. Não, não passei o fim de semana na Itália nem fiz uma viagem no tempo até os primórdios do cristianismo. Meu Coliseu foi montado na Grande Belém, especificamente, entre o quilômetro dois e o quilômetro três da rodovia BR-316, já dentro dos limites da cidade Ananindeua.
A boa e velha violência sempre nos encantando.
   Uma plateia de umas quatro mil pessoas torceu para aquele assalto-com-refém terminasse da pior forma possível: com duas mortes, pelo menos. Era esse o grande show da tarde naquela arena de vida ou morte de uma sucessão de equívocos que culminaram naquele teatro com personagens manjados: dois miseráveis armados, um de 18 e outro de 16; um trabalhador de cerca de 25 anos feito de escudo humano; policiais cansados; imprensa e população pedindo a cabeça dos cristãos.

A notícia é velha e ninguém morreu. Nem refém, nem bandidos, nem policiais. Também saí vivo, embora achasse que a tragédia se precipitaria na minha frente quando a turba avançou disposta a matar de porrada os dois ladrões e a polícia começou a disparar. “Eram mais de três mil. Agora estou certo que eram todos os que estavam na estação”, lembrei desse trecho do Garcia Marques, porém não houve matança para desespero da maioria sedenta por sangue.

Em um texto recente falei como me incomoda a falta de profissionalismo dos ladrões. No entanto, desta vez me chamou atenção outra vertente associada à falta de competência: a recusa dos gatunos em perder. Todo mundo ouviu que o importante é participar e não ganhar. Porém as pessoas estão cada vez mais viciadas em vencer, necessitadas de vencer, não admitindo o fracasso mesmo quando a perda é cristalina como o sorriso de uma criança.
 Ônibus 174: emblema dos assaltos com refém no Brasil. Virou filme.

Essa tara em ganhar se escancara quando os moleques, ao perceberem o cerco da polícia e a prisão como sequência, agarram o primeiro que vêem pela frente como última tentativa de virar o jogo. Mas, parceiro, não há o que virar. O plano deu errado, vamos encarar como homens e entregar as armas, levar os pescoções e enfrentar o xadrez. Afinal, o que se pode fazer diante de dez soldados que, em pouco tempo, se multiplicariam conforme a situação fosse ficando mais tensa?

Mas como cobrar raciocínio lógico de dois projetos de assaltantes? Não sei, mas acredito que pegar uma arma, entrar em uma loja, ameaçar cinco, dez, 15 pessoas exige certo raciocínio e planejamento. O mínimo que seja. Daí acreditar que a atitude extrema de pegar um refém só pode ser a tal repulsa pela derrota que nos afeta a todos, em vários níveis.

Perder é se humilhar ao oponente. Assim é ensinado todos os dias, ainda que digam às criancinhas “o importante é participar”. A perseguição pela vitória a qualquer custo está em casa, nas escolas, nos cinemas, na televisão, nas propagandas, nos produtos, no olhar da namorada, no cansaço do cobrador de ônibus, na vantagem mentirosa que se conta, nas derrotas diárias que escondemos, em tudo.  Não podia ser diferente com o miserável que busca um revólver para garantir o que comer, beber, fumar, cheirar, trepar e manter a sobrevida.

Na grande final de ladrões versus refém-polícia, a torcida numerosa começou a gritar “perdeu, perdeu, perdeu, perdeu” para a dupla de adversários com poucos simpatizantes – apenas três mulheres da família, vindas como exigência na tentativa de manter suas vidas preservadas. E mais uma vez veio o verbo perder derramando todo o seu peso naquelas criaturas que, como nós, aprenderam desde cedo que é preciso muito, muito, muito vencer na vida e pouco, muito pouco, que não é possível ganhar todas.
 Não se pode ganhar todas. Até o Dunga sabe disso.

A derrota da dupla de bandidos fajutos veio com o batismo cruel da vitória esmagadora de uma população que já não aguenta perder para o exército de criminosos que abriga estes e outros adolescentes das nossas recorrentes e tristes estatísticas do dia a dia. E o que me causa estranheza é que cada vez esse vencer diante do crime vem colado com o desejo de não apenas ganhar do oponente com base na lei e em princípios de civilidade que deviam vir de casa. Não basta que a polícia salve o refém e prenda os delinquentes: se quer a Justiça imediata, o linchamento, a morte e, no final de tudo, a desumanidade. Se os policiais não agem conforme a exigência do calor da hora, são chamados de frouxos, ineficientes, bundões e outros adjetivos que ouvi da boca de muitos quando a ação terminou – diga-se, com um resultado excelente: sem mortes.

Não apenas precisamos aprender e ensinar que a derrota faz parte, mas também compreender e passar adiante que a vitória tem seus limites. Nessa balança delicada entre ganhar e perder, perceber a importância dos dois pesos nos faz humanos melhores, capazes inclusive de estender a mão quando o inimigo estiver, de fato, ajoelhado sobre o amargo doído da derrota.http://bebadogonzo.blogspot.com/

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