quarta-feira, 6 de julho de 2011

A espera de um Milagre

No hospital onde convalesce, é chamado de “o brabo”. Tem a mão áspera como uma lixa e falta a ponta do dedo médio da direita, comida por um porco queixada numa caçada. É muito baixo em estatura, o pé parece uma tora, e o olhar, melancólico e distante. Não sabe que mundo é esse para o qual foi trazido: é diferente e não tem gostado. Logo que chegou abriram sua barriga para operá-lo de pedras na vesícula, e hoje carrega um talho de 23 pontos que nenhuma flecha faria. Depois, ficou cheio de bolhas como nunca havia se visto. Imaginou ser feitiço e não entendeu a palavra “catapora”. Assim que melhorou, bateu uma dor de cabeça incrível. O corpo todo doeu como se tivesse caído de uma árvore. Teve vômito, diarréia, sono, cansaço. Também não entendeu a palavra “malária”. Esses meses que Tucan passa na cidade de Jiparaná, em Rondônia, têm sido difíceis e angustiantes. Solitário, não sabe se seu companheiro Mande-I está vivo na floresta, e a única pessoa com quem conversa é o intérprete Mauro de Oliveira. Tucan e Mande-I são remanescentes dos índios piripkura. Salvos do extermínio na região mais violenta do Brasil em agosto deste ano, quando estabeleceram o primeiro contato pacífico com a Funai (Fundação Nacional do Índio). BORBOLETA
O tal do “brabo”, na verdade, é um “borboleta”. “Brabo, nesses cantos do país, é como são chamados os índios que vivem isolados na floresta, sem se relacionar com os colonizadores. E borboleta é a tradução da palavra “piripkura”, apelido dado a esse povo pelos índios da etnia gavião – inimigos tradicionais que vivem em um território vizinho. Pode significar também um bichinho frágil que muda de lugar toda hora. Se esconde, some. E assim, mudando de lugar como nômades, sumindo, se escondendo, mas nem tão frágeis como possa parecer, esses dois piripkuras sobreviveram ao longo de anos como verdadeiros heróis em meio ao holocausto amazônico. O resto de seu povo ou ainda se esconde como borboleta na floresta, como torce a Funai, ou foi massacrado.

O contato aconteceu na primeira semana de agosto, em expedição comandada pelo auxiliar de sertanista Jair Candor. Ele liderava um pequeno exército de brancaleone de cinco pessoas. Tinham de fazer frente aos madeireiros espalhados pela mata, muito mais bem equipados. Na sua trupe estava a índia Rita – cuja vida é um mistério. Ela é outra sobrevivente desse povo que, por acaso, foi parar numa fazenda no início dos anos 80. Perdeu contato com sua tribo e virou escrava sexual dos peões. Depois de uma denúncia, foi resgatada pela Funai e largada para viver e casar entre os índios karipuna. Nunca mais viu ninguém de seu povo.

Jair e companhia encontraram os índios na beira de um igarapé, depois de meses no mato. É um pequeno afluente do rio Roosevelt, na tríplice fronteira de Mato Grosso, Rondônia e Amazonas. Terra sem lei, dentro do município de Colniza: cidade mais violenta do Brasil. Disparado, a “número um”, com uma taxa de 165 assassinatos por 100 mil habitantes – no Rio de Janeiro o índice é 56/100 mil. Madeireiros organizados em máfia, garimpeiros, seringueiros, pistoleiros (conhecidos como “guaxebas”): são as pessoas das quais Tucan e Made-I fugiram a vida toda, e as que escravizaram Rita e dizimaram seu povo. Homem branco, para Tucan, é bicho sanguinário. Quando o conheci, ele quase não saía do quarto. Ficava estirado na rede. Entediado, num desses dias disparou-se a falar.

E contou uma história mais ou menos assim, traduzida por Mauro.
“Estavam fugindo. Decidiram atravessar um rio largo [deve ser o Roosevelt], numa canoa talhada em árvore. Quando um grupo chegou do outro lado, foram surpreendidos por brancos. Muitos morreram à bala. Esses brancos pegaram a canoa e fizeram o trajeto inverso pelo rio. Tucan e seu grupo fugiram. Os brancos seguiram seus rastros e, um tempo depois, chegaram até a aldeia. Nessa hora, ele diz que estava em cima de uma árvore colhendo mel. Desceu rápido e ficou olhando de longe, escondido. Os brancos cercaram os parentes. Amarraram as mãos deles e cortaram as cabeças, uma a uma. Juntaram elas e os corpos e atearam fogo.

Ele saiu correndo. Depois reencontrou Mande-I e mais alguns outros no mato.” Depois dos ataques que sofriam, confidenciou Rita, as mulheres mais velhas da aldeia voltavam para o local e recolhiam
as carnes de seus parentes mortos, para ser comidos em rituais de canibalismo típicos dos povos tupi. E proteger os espíritos de seu povo da crueldade dos invasores.
ÍNDIOS ISOLADOS
A realidade dos índios isolados é pesada. Ainda restam 71 grupos nessa situação. Uma diversidade que só o Brasil tem – mesmo que não consiga proteger. Até hoje, são caçados como bichos na floresta. E a saga piripkura é o mais novo drama dessa história no Brasil. O desconcertante é que esses dois são pacíficos. Alegres. Tucan deve ter menos de 1, 40 m. Um fato que chamou a atenção das enfermeiras é uma prática tradicional de sua tribo: o alongamento peniano. Ritualmente, desde pequenos, usam formigas e ervas para fazer o pênis crescer. Entreouvido nos corredores, ganhou o apelido de “a tribo do pau grande”.

Desde que descobriu que esses índios existiam, nos anos 80, a Funai não se prontificou a demarcar uma terra para eles, mesmo sem tê-los contatado. Por isso continuaram a ser caçados. Foi preciso contatar Tucan; mesmo que isso tenha significado, na estada na cidade, o contágio de catapora e malária. Agora a história vai ser outra, promete Elias Bigio, atual coordenador geral de Índios Isolados da Funai: “Vamos dar seqüência ao processo de demarcação. Eles não vão ser esquecidos como foram ao longo de todos esses anos”, afirma, categoricamente. Não muito longe de onde vivem Tucan e Mande-I, é dada como certa a existência de outros índios. Podem ser os parentes que atravessaram o rio fugindo do massacre. Está nos planos para os próximos meses, disse Bigio, confirmar a presença deles e proteger as terras. Com a carnificina de Colniza chegando cada vez mais perto, é bom não demorar.
Fonte:Trip

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